Ao lado de Novembro de 63 (2011), Doutor sono é o livro mais inspirado de Stephen King neste século. Foi colocado na história toda a mágoa originária da adaptação de Stanley Kubrick (como transformar Wendy em uma mulher tão fraca e Jack despido de qualquer humanidade) e qualquer tipo de metáfora ou analogia perdida no filme de 1980 foi dobrada, e com isso veio a tarefa ingrata de Mike Flanagan que tinha, ao mesmo tempo, adaptar um longo livro escrito em núcleos e servir de sequência para o filme de Kubrick que rejeita suas ideias centrais. 



Não seria tarefa fácil pra ninguém assumir o projeto, mas olhando para a última década Mike Flanagan foi definitivamente o nome certo. Misturar terror com drama familiar é sua especialidade vide os excelentes O Espelho (2013); Ouija: Origem do Mal (2016); e a popular série da Netflix A Maldição da Residência Hill (2018 - Atualmente). Qualquer novo projeto de Flanagan me chama a atenção, e este sendo uma adaptação de um livro tão querido por mim fez Doutor Sono ser um dos meus filmes mais esperados desse ano, e não decepcionou.

 Alguns jumpscares fora de lugar nos primeiros dez minutos me assustaram não pelo barulho, mas pelo medo do rumo que o filme tomaria. Imediatamente após Ewan Mcgregor entrar em cena como Danny Torrance adulto, porém, o filme entra nos trilhos e de lá não sai mais. Até alguns anos atrás seria impensável ter dois atores de carreiras já consolidadas como Ewan Mcgregor e Rebecca Ferguson nesse filme. Em grande parte temos de agradecer ao movimento do pós-terror (por mais que eu discorde da nomenclatura) que novamente colocou o gênero como algo que pode ser uma arte elevada, mesmo que essa posição não seja ainda respeitada universalmente, e o nível de atuação apresentado aqui eleva qualquer trabalho. Ewan convence com perfeição a luta contra os mesmos fantasmas do pai de seu personagem, sejam gêmeas assustadoras do hotel Overlook ou alcoolismo,  Rebecca Ferguson é perfeita para o papel de Rose Cartola, a sensual e diabólica ladra de inocência e assassina de crianças, e Jacob Tremblay que tem o melhor corpo de trabalho de qualquer criança na industria, com uma grande atuação atrás da outra, tem em doutor sono uma das melhores cenas de todo o ano de 2019. 


Para quem leu o livro, é uma ótima adaptação. Obviamente que alguns personagens grandes tiveram que ser cortados, e as cenas extremamente gráficas não estão presentes no mesmo nível de quando escritas, mas elas estão lá, com uma cena em particular sendo extremamente dolorosa e desconfortável. Flanagan é claramente apaixonado pelo filme de 1980, mas ao mesmo tempo quer pedir desculpas a Stephen King pelo que foi feito com seu trabalho mais íntimo, e consegue equilibrar com quase perfeição os dois aspectos. 

O filme toma seu tempo sem medo, um ritmo moroso sem nunca ficar lento. Vai no exato ritmo necessário, com um ambiente atmosférico que te convida a fazer parte do universo e a edição com pouquíssimos cortes geralmente opta pela transição de imagens sobrepostas que causa uma fluidez que nunca te desliga do que está acontecendo, toda cena te puxando para a próxima.

O uso de atores ao invés da tecnologia de de-aging foi com certeza um acerto. Novos atores em papéis imortalizados por outros sempre vai causar estranheza, mas ainda é muito melhor que rostos robóticos.



 A falta de caracterização e exploração do passado dos antagonistas, "o verdadeiro nó" os torna mais assustadores e misteriosos, e permite mais tempo para se aprofundar na interessantíssima mitologia estabelecida em O Iluminado (1980). Também em outros núcleos, o filme consegue em poucas cenas criar grandes personagens como Andi Cascavel ou o Rebatedor 19.

 No acender das luzes você fica com um filme extremamente emotivo que acerta todas as notas dramáticas mas se perde na nostalgia mal encaixada (algumas músicas retiradas diretamente do primeiro filme que não encaixam com o restante da trilha sonora e algumas referências visuais que não tem nenhuma função narrativa além de te lembrar do filme de Kubrick), te deixa um sentimento que não era pra estar ali em um filme que poderia quase inteiramente andar com as próprias pernas mesmo sendo uma sequência. Um ótimo filme que mesmo não tendo um climax explosivo, te dá uma conclusão satisfatória pra uma história que está há décadas no imaginário popular. Com alguns diálogos expositivos e algumas inconsistências de tom, Mike Flanagan mostra que não é Kubrick, mas é extremamente competente e entrega um dos melhores filmes do ano. 




Nota 8/10


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