Martin Scorsese tem o currículo mais invejável de toda Hollywood e talvez de todo mundo do cinema, entregando em sua 5ª década como cineasta filmes como Ilha do Medo (2010), A Invenção de Hugo Cabret (2011), O Lobo de Wall Street (2013) e Silêncio (2016), sendo alguém que não tem nada mais a provar mas que continua filme após filme nos deixando de queixo caído com a qualidade que mantém, o que não poderia ser dito sobre a carreira dos principais atores de O Irlandês (2019). Entre o aposentado Joe Pesci, Al Pacino e Robert de Niro todos estavam há anos apenas coletando cheques em filmes de qualidade duvidosa (com raras exceções). Só o fato desses atores estarem novamente em um filme desse calibre é uma felicidade, e é espantoso que essa seja a primeira colaboração entre Al Pacino e Scorsese, respectivamente um dos atores mais explosivos da história do cinema e um diretor que leva seus atores aos excessos da atuação.

Após anos tentando encontrar uma casa, sendo rejeitado de estúdio em estúdio, finalmente O Irlandês encontrou sua casa na Netflix. Se por um lado é triste que pouquíssimos terão a chance de ver esse filme na grande tela, por outro é incrível apenas ele existir, pois hoje nenhum estúdio em sã consciência daria US$ 159 milhões para um épico de 3h30m que respeita completamente a visão artística do diretor e que não envolve ninguém vestindo capas e voando. Recentemente o único exemplo que vem à cabeça é no caso da Warner com Blade Runner 2049, e com consequência encontrando um fracasso colossal de bilheteria.


O trabalho mais fácil e agradável de toda a produção com certeza foi o de Ellen Lewis, diretora de elenco. Reunir Al Pacino e De Niro para um filme de máfia novamente, o que não acontecia desde O Poderoso Chefao Parte II (1974), tirar Joe Pesci da aposentadoria que só fez 2 filmes nos últimos 21 anos, Chamar Harvey Keitel para um papel de 5 minutos, nada estava fora de alcance e toda essa liberdade se mostra efetiva no produto final. Desde os menores papéis como Ray Romano interpretando o advogado extremamente competente mas que vira uma criança quando em contato com mafiosos pela admiração que nutre por esses, ou Anna Paquin com quase sem nenhuma fala, mas transmitindo tanto em sua atuação, tanta emoção, tanto passado, conseguindo passar tudo sem abrir a boca, característica inclusive trazida desde sua infância quando interpretada não com tanta perfeição mas ainda muito bem por Lucy Gallina. Jesse Plemons mostra aqui novamente o motivo pelo qual está em tantos grandes filmes nos últimos anos, com toda cena em que participa demonstrando total controle de personagem.

Quanto ao elenco principal, Al Pacino nasceu pra interpretar Jimmy Hoffa, com seus momentos introspectivos , mas geralmente gritando em frente a multidões. Russel Bufalino, personagem interpretado por Joe Pesci, vai contra tudo que Pesci tinha feito com Scorsese até então. Se em Casino ele botava medo por apertar a cabeça de alguém até o olho sair ou por enfiar uma caneta no pescoço de outro alguém, aqui ele é tanto ou até mais ameaçador, mas usando olhares sobre os óculos e frases que podem parecer descompromissadas como “Não esqueça que você e sua mulher estão seguros, porque vocês estão comigo”. Robert de Niro tem até então a melhor atuação de todo 2019, cheia de camadas, com todo o peso de uma vida como mafioso, o peso do arrependimento ou de querer ter sido alguém melhor quebra o coração em dois momentos, transita com leveza e precisão durante as várias décadas vividas em tela por seu personagem e as três horas e trinta minutos fazem você conhecer Frank Sheeran intimamente, e até entender o motivo do personagem ter tomado algumas de suas escolhas, não concordando, mas entendendo. Também é importante citar a narração do mesmo, que conecta toda a narrativa, contextualizando tanto o contexto micro (das relações) como o macro (a política e grandes questões) do período em que o filme passa.


O filme já te conquista na primeira cena, com um plano sequência típico de Scorsese mostrando todo o interior do asilo onde Frank Sheeran se encontra e terminando com De Niro saindo da narração e continuando a conversa em tela. As três horas e trinta minutos acabam pesando um pouco porque não tinham como não pesar, mas é magistralmente editado por Telma Schoonmaker (que provavelmente é a melhor editora viva). A cinematografia de Rodrigo Prieto é o esperado de um fotógrafo trabalhando pra Scorsese, seja ficando uns segundos a mais em uma parede recém-pintada, ou trazendo uma energia contagiante pra simples cenas de conversa fiada em um restaurante ou em uma “reunião de negócios”, invés da tradicional troca de ângulos para ver a reação de quem está ouvindo.

Os únicos problemas do filme se encontram na primeira hora, enquanto ainda estamos conhecendo o vasto número de novos personagens. O ritmo do filme pode parecer estranho mas é o caminho necessário pra se criar a intimidade e atmosfera que se mantém até o final do filme. O segundo, último e mais grave problema do filme é a tecnologia de de-aging usada no rosto e corpo dos atores, não por ser mal utilizada pela equipe de efeitos visuais, mas por ainda estar em um momento em que possui algumas limitações. Chega a assustar o quão artificial parece no começo, os olhos e sobrancelhas sem vida, tendo seu pior momento em que o personagem de De Niro, no momento perto dos 50 anos, entra em uma briga e por mais que seu rosto e corpo aparentassem a idade, seus movimentos entregavam ser alguém chegando perto dos 80. Com o passar dos minutos entretanto você se acostuma e a tecnologia vai ficando melhor e melhor até chegar ao ponto de estar imperceptível se é usado CGI, maquiagem ou apenas o rosto do ator atualmente. 


Se o filme aparenta começar um pouco disperso entre tantos núcleos ou lento, não desista, O Irlandês não é um filme que você possa deixar de fundo enquanto usa o celular, ele exige sua atenção mas te recompensa no final. O ritmo cada vez mais veloz e a história cada vez mais fechada, por mais que fuja da tradicional adrenalina explosiva de Scorsese, é de um impacto emocional inacreditável, e as últimas duas horas da história estão entre as melhores de toda a carreira do diretor. Veja o filme na maior tela que você conseguir e se possível as três horas e trinta minutos de uma vez só. O impacto emocional, a acostumação a tecnologia de de-aging e a maturação dos personagens através dos anos podem se perder caso o filme seja visto em partes.

A absoluta falta de roteiro expositivo é o que mais ajuda na já citada intimidade causada entre o telespectador e os personagens. A cada cena de jantar você se senta junto na mesa, não existe uma fala artificial, uma facilitação pra levar a história pra frente, e qualquer empecilho encontrado no roteiro era resolvido com a magistral narração que tem tudo para entrar na história como um dos melhores usos do recurso na história do cinema.

Toda a parte de som aqui é de outro mundo, não só pela mixagem perfeita nas poucas mas impactantes cenas de ação, ou pelo som das armas que é diferente te tudo que você já viu, ou a trilha sonora sem uma música fora do lugar, sendo primeiro filme de máfia de Scorsese desde Os Bons Companheiros (1990) onde não se ouve Gimme Shelter dos Rolling Stones porque simplesmente não tinha lugar para a música na trama, mas também e principalmente pelo silêncio esmagador de algumas cenas, tendo a completa noção de quando deixar seus personagens quietos apenas um olhando para o outro. A mudança da tonalidade da voz dos atores ao passar das décadas torna imperceptível o ponto aonde termina a atuação e começa o trabalho de voz em pós-produção.


Quando o filme vai se aproximando da última hora a conexão do espectador com as personagens é tão grande que o diálogo torna-se quase desnecessário no filme. Alguém colocando um óculos escuro, fazendo uma curva mais lenta com o carro ou tremendo antes de pegar o telefone te diz tudo que você precisa saber naquele momento. Essa conexão é tão grande que você eventualmente começa a se sentir mal por decisões ou ações tomadas na tela, mesmo com boa parte dos personagens sendo pessoas desprezíveis ou ao menos moralmente corruptas. Em nenhum momento o filme justifica as ações em si, mas te mostra com perfeição o caminho que levou aquelas pessoas a fazerem tais ações. No grande ponto de mudança da trama, onde quase qualquer diretor resolveria com um corte seco e vinte segundos, Scorsese decide estender a cena por quase meia hora nos colocando dentro da cabeça da personagem e nos fazendo sentir todo tipo de sentimento que se passa em sua cabeça, com uma tensão insuportável que deixa quem assiste com o coração na mão, e as piadas encaixadas no meio da cena trazem um riso carregado de culpa, culpa essa que é integrante a esse momento da história.

As críticas aos defeitos que podem surgir de certa interpretação ou excessos da masculinidade, à podridão do dinheiro e busca pelo poder e à Igreja Católica (abordada aqui com mais sutileza do que em outros trabalhos) presentes em quase todo filme do diretor continuam aqui, com a adição do tema novo do último estágio da vida, abordada de maneira maravilhosa. A proximidade com a morte e a reflexão que isso traz sobre o passado são o foco do filme, com a morte inclusive assumindo o papel de câmera em determinados momentos, conversando com nosso narrador. 


Martin Scorsese é um cineasta de carreira variada e grandes filmes em diversos gêneros, mas seu carro-chefe sempre foi os filmes de máfia, ou de “crime”. Filmes carregados de adrenalina e protagonistas de moral duvidosa, característica que continua aqui em O Irlandês, porém de um jeito tranquilo, contemplativo onde o cineasta chegando aos 80 anos reflete sua própria mortalidade. Entrega um trabalho que beira a perfeição, se junta a galeria de seus melhores filmes e que, se necessita de uma certa “boa vontade” por parte do público em separar quase quatro horas para apreciar o filme, recompensa com um tempo extremamente bem usado em uma obra que consegue emocionar, fazer pensar e entreter, sendo tranquilamente um dos melhores filmes do ano.



Nota 9,5/10

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